Aqui jaz uma chaminé (+- 1900-2023)

Aqui jaz uma chaminé (+- 1900-2023)

(A chaminé acima não pode ser mais vista porque foi demolida para todo o sempre)

É o símbolo de um tempo passado com que nos habituamos a conviver. É a materialidade da memória, constituída de tijolos. Talvez por isso doa ao vê-lo desmoronar irremediavelmente pela decisão do homem.

Não é apenas a morte de remanescente chaminé do Ipiranga Antigo, claro que não se trata disso ao observarmos, em choque, a demolição da chaminé inativa da Linhas Corrente, na rua do Manifesto.

É um tanto da nossa memória que se perde, despencada, morta, inerte.

É um tanto do passado compartilhado, a herança de nossos bisavós, avós e pais que ali muito trabalharam, décadas a serviços dessa indústria têxtil, pioneira da industrialização do nosso bairro, ao lado da tecelagem dos Jafet, a partir da primeira década do século 20.

Dói porque algo morre inelutavelmente. Desaparecer dos olhos é de verdade desaparecer um pouco do coração. Ali era um lugar de memória, observado de longe, uma companhia para os olhos e a alma.

Era a testemunha viva de nossa origem fabril e operária, exemplo presente de um tempo que se acostumou a lançar fuligem em nossas narinas e pulmões. Claro que não é disso que sentiremos saudade, mas é bom preservar para que a gente saiba do jeito que foi, como vivemos, como sofremos até, inclusive, para que algo semelhante não nos alcance outra vez.

Foi triste ver cair tijolo por tijolo num rascunho trágico. Vai ser triste olhar e não vê-la mais.

Triste é reconhecer que as decisões tomadas a portas fechadas ignoram nuanças, necessidades, até certo ponto a própria história.

A Linhas Corrente alegou, para demolir, que a chaminé enfrentava problemas estruturais e punha em risco a segurança de seus trabalhadores. Por que não interveio para sanar esses problemas, ao invés de demoli-la, provavelmente nunca saberemos.

Dói de verdade ser surpreendido sem chance de resposta, de um dia para o outro, como alguém fosse dono privado e monopolista da memória coletiva de um povo, o nosso povo ipiranguista.

Assim vão nos privando das complexidades do tempo, das transformações do tempo, como se tudo se resumisse a um condomínio residencial ou a um centro de logística.

Mais respeito, por favor, com a memória e a vida alheias. Só que mais uma vez a gente chega tarde.